José Ferraz Alves 24 Jan 13
“O problema de fundo, que é de toda a União Europeia, está em querermos ser competitivos numa economia globalizada, usando as mesmas armas dos países que nos estão a afectar, com a degradação das condições de trabalho e sociais e enfraquecendo assim a procura interna, que é a fonte criadora do emprego, nomeadamente nas novas actividades que não sofrem com o impacto da evolução tecnológica: a arte, o ensino, a saúde, as indústrias criativas, o turismo, a energia e o próprio Estado Social”
1. Ponto prévio
Esta questão surge de uma relação de causa-efeito que se pretende estabelecer entre os problemas económico, financeiros e sociais, que vivemos presentemente, e a moeda que temos. Desde já, parece-me que, ao lançarmos a solução de uma mudança de moeda, pode-se cair no mesmo campo de sobrevalorização e fundamentalismo do financeiro às duas outras dimensões – o económico e social - , que no fundo é uma crítica que se pode apresentar às medidas de austeridade tomadas no actual sistema do euro.
Considero, que a recente intervenção do BCE nos mercados financeiros, que soube controlar a subida descontrolada das taxas de juro e a imediata necessidade de resgatar a Espanha e a Itália e permitindo a redução do custo financeiro das dívidas portuguesa e grega, nada têm a ver com as medidas que se têm tomado de reestruturação das condições da nossa economia, porque o essencial da crise está lá e a acentuar-se: o desemprego e o endividamento externo.
A identidade nacional associadas à moeda é um factor importante, mas esta cria-se por outros factores que nos permitem não depender de condições impostas pelos credores internacionais, que tanto surgem com o euro como o fariam, e já fizerem por duas vezes, com o escudo. A independência não existe numa economia que esteja longe de ser auto-suficiente.
A mudança pode e deve ser feita no campo da moeda que temos, o euro. Porque o problema está a outro nível e depende do nosso entendimento da crise que vivemos e da forma de lhe encontrar uma resposta mais profícua.
Se a despesa pública e a intervenção do Estado fossem virtuosos, Portugal seria hoje um país rico, mas somos pobres porque desiguais na distribuição de rendimentos.
2. Alguns números
O FMI vem a Portugal pela terceira vez, sendo que as duas primeiras foram no campo do escudo, em 1978/79 e em 1983/84.
Em 1977, com uma taxa de desemprego superior a 7%, bens racionados, inflação crescente, conflitualidade política e um escudo desvalorizado, o FMI interveio com “pacotes” que se traduziram em redução de salários e subida de impostos.
Em 1983, com o desemprego acima dos 11% e uma dívida externa galopante devido à subida das taxas de juro internacionais, o FMI emprestou 750 milhões de euros e novamente impôs cortes nos salários da Função Pública, aumentos de preços, travão ao investimento público e cortes nos subsídios de Natal, entre outras medidas. Também se iniciou o processo de privatizações.
Convém analisar, com mais pormenor, o período de 2001 a 2011, fase da nova moeda.
Neste período, a média das taxas de crescimento anual da economia portuguesa foi de menos de 1%/ano. No período 2000/2011, Portugal importou bens no valor de quase 600 mil milhões de euros (mais do que o triplo do valor do PIB), tendo exportado bens no valor de apenas 350 mil milhões de euros, acumulado assim um gigantesco saldo negativo de 250 mil milhões de euros.
Como consequência, entre 2000 e 2011, a Divida Liquida de Portugal ao estrangeiro aumentou quase 300%, correspondendo já a 120% do PIB, ou seja, mais do que toda a riqueza criada em Portugal em 2010: a Dívida do Estado ao estrangeiro cresceu 120%; a Dívida total directa do Estado aumentou 160% para 175 mil milhões €; o endividamento dos particulares, que correspondia, em 1997, a 41% do PIB e o das empresas não financeiras, a cerca de 75% do PIB, passou para 100% e 120% do PIB, em 2011, respectivamente, cerca de 130% do rendimento disponível.
Uma parte significativa dos meios financeiros obtidos pelo crescente endividamento do País, do Estado, das empresas e das famílias, não foi aplicado em investimentos produtivos, pelo que a causa deste crescimento anémico está associada à desindustrialização do País e à destruição da agricultura e pescas nacionais. O Estado endividou-se para construir estádios de futebol, auto-estradas e adquirir submarinos, ou então, o que tem sido menos referido, para cobrir gastos em que não existiu uma vontade politica séria para combater eficazmente o desperdício e a má gestão, garantindo gigantes lucros a alguns grupos económicos. Promoveu-se o transporte rodoviário, muito mais caro, poluente e criador de dependência externa, em prejuízo do transporte ferroviário e marítimo. O governo multiplicou Parcerias Público Privadas nas auto-estradas, saúde e barragens, cujos custos atingirão nos próximos anos cerca de 60 mil milhões €, que asseguraram elevados lucros aos grupos financeiros e da construção civil.
3. Porque se procura a resposta no regresso ao escudo?
A situação actual é diferente da existente quando os governos de então pediram a intervenção do FMI, porque Portugal, com a entrada no euro, perdeu o poder para alterar a taxa de câmbio e para emitir moeda.
Estes poderes passaram para o BCE – Banco Central Europeu.
No passado, o Estado, quando estava em dificuldades, emitia dívida, que era comprada pelo Banco de Portugal a uma taxa de juro acordada com o governo. Desta forma, o Estado obtinha os meios financeiros necessários para poder saldar os seus compromissos.
Agora, como esse poder passou para o BCE, e como este se recusa a emprestar directamente aos Estados da União Europeia, embora o faça directamente aos bancos, o Estado português só pode obter os meios financeiros de que precisa recorrendo aos tão falados "mercados", que são formados pelos bancos, fundos e companhias de seguros, ficando à mercê das suas exigências e das suas taxas de juro.
Esta suposta limitação pela substituição do Banco de Portugal pelo BCE pode ser alterada, se tomado um conjunto de medidas a nível europeu:
- Compra de dívida soberana dos Estados pelo BCE
- Mutualização de dívida
- Fim dos offshore de Londres e do Luxemburgo
- Criação de Agência de notação europeia para as dívidas
- Harmonização fiscal na Europa
- Reforço do orçamento europeu, dos quadros comunitários de apoio, como transferência de recursos financeiros
Com o Euro, também perdemos a possibilidade de desvalorizar a moeda, geralmente associada a uma política de acréscimo de competitividade pela via dos preços, tornando a produção nacional mais barata nos mercados externos e face aos produtos importados. Mas, o paradigma de apoio às exportações e à internacionalização não resultou na criação de emprego e coloca recursos financeiros fora do País. Geralmente, o retorno dos investimentos termina nas contas dos empresários e não das empresas, não sendo transferido pela via dos salários à economia nacional. Muitas vezes fica fora do país, em contas na Suíça e outros países geograficamente centrais e exclusivos do euro.
Por outro lado, o emprego é forte nos mercados de proximidade e locais e em actividades de suporte dirigidas ao mercado interno. O emprego depende do poder de compra, da procura e não de políticas “ditas activas de emprego”. Se existir rendimento disponível, as empresas investem e criam emprego, porque têm clientes.
Com a desvalorização do escudo associada a uma aventureira saída do euro, não possível de quantificar e que poderia variar de 50% a 300%, ou mais, teríamos um grande aumento do preço da energia importada e assim afectaríamos todo o potencial de desenvolvimento da nossa indústria. Porque o principal custo e factor de competitividade industrial não está nos salários – entre 20% a 30% dos custos de produção sem matérias-primas -, quando a energia pesa entre 50% a 60%. As próprias matérias-primas, que não temos no País, veriam o seu custo enormemente acrescido.
Com a saída do euro, teríamos uma forte perda do poder de compra, subida de preços, um aumento do valor nominal da dívida externa, subida de taxas de juro e mais falências empresariais. Em contrapartida, ganharíamos independência e responsabilização integral do Estado Português pela sua maior autonomia.
4. Afinal, que crise é esta?
O problema de fundo de Portugal é o deficit externo. O endividamento vertiginoso do Pais resulta do elevado e constante défice anual das contas externas portuguesas.
A resolução deste problema passa pelo aumento da produção nacional de bens transaccionáveis. Mas, contrariamente ao que têm sido as politicas dos governos, deve ser, em primeiro lugar, orientada para substituir as importações e, só depois, para aumentar as exportações:
- É urgente inverter a politica de crédito da banca em Portugal que tem promovido a especulação, o consumismo e os negócios à volta das dívidas públicas, em prejuízo das actividades produtivas, mais acentuado em fases em que o crédito é escasso.
- É possível aumentar as receitas do Estado sem aumentar impostos, pelo combate fiscal à evasão e fraude fiscal e contributiva, eliminando benefícios fiscais injustos que continuam a privilegiar alguns grandes grupos económicos e financeiros.
- É urgente renegociar as Parcerias Públicas Privadas, eliminando a taxa de disponibilidade e obrigando os privados a partilhar os riscos, dado que têm lucros assegurados à custa do Orçamento de Estado.
- É necessária uma Auditoria do Tribunal de Contas à divida do Estado e a publicação de resultados, vendo a que é ilegítima e a odiosa.
- É urgente assinar contratos de serviços públicos com as empresas de transportes, com o objectivo de definir as responsabilidades do Estado e combater a má gestão
- É urgente desenvolver um esforço planeado e sistemático para identificar desperdício e subutilização de meios que continua a existir na Administração Pública
- É urgente combater o problema dos monopólios, dado que, por exemplo, a energia custa menos 20 vezes na China do que em Portugal.
5. Problema e solução
Se não aceito que o problema esteja na moeda que temos presentemente, quero terminar este texto com o que penso serem razões e soluções para os problemas que vivemos.
O nosso problema está em querermos ser competitivos numa economia globalizada, usando as mesmas armas dos países que nos estão a afectar, com a degradação das condições de trabalho e sociais enfraquecendo assim a procura interna, que é a fonte criadora do emprego, nomeadamente nas novas actividades que não sofrem com o impacto da evolução tecnológica: a arte, o ensino, a saúde, as indústrias criativas, o turismo, a energia e o próprio Estado Social, que são geradores de emprego.
"Os países mais desenvolvidos não são aqueles onde os salários são mais baixos, mas onde são mais elevados. Identificamos a disparidade de rendimentos como um dos três maiores perigos para o crescimento global e para a coesão social", segundo declarações recentes de Robert Greenhill (World Economic Fórum, Davos), … " é necessário também debater as compensações dos executivos. Os líderes dos índices de competitividade são sempre a Suíça, Singapura e os países nórdicos, onde os salários são elevados e o Estado Social são sólidos. Os pontos-chave no desenvolvimento de um país são a solidez das Instituições, uma Segurança Social forte, uma grande confiança na sociedade e a vontade dos governos e dos empresários em trabalharem com conjunto. A verdade é que os jovens estão a ter menos oportunidades para construírem carreiras de sucesso. Nós queremos dar-lhe hipóteses de prosperaram do mesmo modo que os seus pais puderam fazer. É por isso que vamos ter em Davos o que chamamos de “young shapers”, empresários até aos 30 anos e queremos dar-lhes voz".
John Kenneth Galbraith, a propósito da crise de 1928, colocou a desigualdade na distribuição de rendimentos como sendo a sua principal causa. O problema não era o consumo, mas o existirem poucos consumidores, o que tornou a economia dependente de um alto nível de investimento ou de um elevado nível de consumo de bens de luxo, ou de uma composição de ambos, mas gerado por poucos. O capitalismo moderno tentou resolver o problema através do crédito, incentivando a procura. Por outro lado, desenvolveu-se todo um conjunto de políticas públicas, de génese Keynesiana. Mas, com os actuais níveis de endividamento, a solução passa necessariamente pela correcção real das desigualdades na distribuição de rendimentos. Numa sociedade onde a riqueza é melhor distribuída, esta circula melhor. Mais vale entregar migalhas a milhões, do que muito a poucos.
É preciso focalizar no patamar das famílias, que alimentam todo o sistema, empresas, banca, Estado.
Trata-se de uma questão meramente técnica, não ideológica ou valorativa e tem a ver com a forma como os fluxos de rendimentos se propagam, do patamar das pessoas para os outros, as empresas, a banca e o Estado. As pessoas pagam impostos, juros e bens. As empresas, a banca, o Estado, recebem esses fluxos. Logo, a solução sustentável está nos rendimentos das pessoas, que têm de ser capitalizadas.
Os rendimentos distribuídos a título de salários e de pensões são geralmente vistos como custos, das empresas e do Estado, pelo que se têm promovido as ideias para a sua redução, para aumentar a competitividade das empresas e reduzir o deficit orçamental, respectivamente. Só que, de outra perspectiva, estes rendimentos são importantes para assegurar a procura interna de bens e serviços, necessário para a promoção de novos empregos, que na Europa se situam na procura da classe média em áreas como a saúde, educação, cultura, turismo, artes, indústrias criativas, património, cuidado geriátrico, etc., e menos nos sectores concorrenciais com os países de baixos custos e sem Estado Providência.
Estes rendimentos também contribuem para as receitas do Estado e para a sua menor despesa em subsídios sociais e de desemprego, assim equilibrando o Orçamento de Estado. Os salários e as pensões são a melhor forma de distribuir esses rendimentos, sobretudo nos níveis mais baixos e para subsistência. Nos níveis elevados de rendimento, caímos na situação de 1928, com a acumulação e retenção dos fundos financeiros, que não são gastos nem circulam.
O rendimento disponível dos trabalhadores e pensionistas deve aumentar, se não pela via do acréscimo salarial por ditas razões de competitividade, então (i) pela redução dos custos correntes que têm e (ii) por uma política de distribuição de lucros nos salários, que induza uma maior circulação do dinheiro, que não pode estar parado nos poucos que têm demasiado.
Como se aumenta o rendimento sem alterar o valor dos salários? Exemplos de mecanismos.
O Fundo de Desendividamento, que ao reduzir as prestações mensais para 1/3 dos encargos actuais, gera acréscimo do consumo e do IVA. Os 7,5 mil milhões da linha da Troika para a Banca, que vão ser devolvidos, permitem que 800 mil famílias acresçam o seu rendimento mensal médio em 300 euros, para saldos médios de dívida de 9 mil euros e prestações mensais de 450 euros de juros que se reduzem para 150 euros, com efectivo pagamento do capital em dívida. Esta substituição de juros usurários gera 2,9 mil milhões de euros de consumo adicional e de vendas para empresas e 660 milhões de euros/ano de receitas para o Estado.
2. Dinamizando uma efectiva concorrência ao nível dos sectores protegidos, como a electricidade, combustíveis, portagens, comunicações, finanças, cujos lucros supra-normais que apresentam demonstram a margem para actuar.
3. Outra via é a imposição de maiores impostos nestes sectores, que têm taxas reais muito inferiores às dos particulares, sendo a contrapartida uma redução do IRS.
4. Aumento das tributações sobre a distribuição de lucros e os benefícios fiscais à incorporação de reservas em resultados e à distribuição de lucros nos salários, via “sucess-fees”.
José Carlos Ferraz Alves
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