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O Ouriço

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Uma praga eleitoral

João Palmeiro 6 Abr 14

Uma leitora dirigiu-se ao Conselho Regulador da ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social) insurgindo-se contra a utilização da palavra "praga" num título do jornal Diário da Região.

"Uma praga de gatos" era o título que a leitora sugeria que fosse substituído por "Sobrepopulação de gatos". E a queixa tinha por base a possibilidade da notícia conduzir o leitor menos avisado para uma opinião sobre os gatos, que a queixosa considerava desajustada e por isso referia a desadequação do título ao abrigo do princípio de que as notícias devem ser exatas.

Já estou a prever que os leitores se estejam a perguntar, então o que faz a referência às eleições no título desta crónica, mais um título desajustado, poderão pensar. Já lá iremos pois, em bom português, trata-se de uma hipérbole, “matar dois coelhos de uma cajadada”, a questão da construção de títulos e a situação, sobre que tenho escrito regularmente, da cobertura dos atos eleitorais.

Ao pretender atribuir ao título um valor intrínseco e descontextualisado da estrutura da notícia, a leitora queixosa está a fazer o mesmo que a Comissão Nacional de Eleições e mais recentemente os partidos politicos - todos sem exceção - com assento parlamentar, acabaram por fazer em relação às preocupações dos media, e do Presidente da República e da Presidente da Assembleia da República, acerca da liberdade/obrigações dos media e dos jornalistas na cobertura das campanhas políticas e eleitorais ao apresentarem (no inicio deste mês de Março) projetos de lei que apenas resolviam a sua visão do problema e não tinham em conta os destinatários da lei e que acabaram por não ter seguimento legislativo.

Num caso pretende-se substituir o sublinhado de notícia "uma praga" por um descritivo sem sentido noticioso, "sobrepopulação", confundindo texto jornalístico com um comunicado ou com uma redação escolar.

No segundo caso, trata-se de um autismo relacionado com o medo de que o jornalismo se transforme ou seja capturado pela propaganda e, por isso, mais vale acautelar e deixar sobreviver regras (de 1975 e então plenamente justificadas) totalmente desajustadas ao panorama dos media em Portugal em 2014 e caducas para uma sociedade democrática como a nossa.

Nos dois casos o problema é a ausência de perspetiva do papel do jornalismo na sociedade e o desconhecimento (ou será esquecimento?) das regras próprias do texto jornalístico.

Comecemos pela praga (dos gatos), a notícia, como tese geral só existe se o facto que descreve for de interesse geral; alguém, um cidadão que tenha em casa um inusitado número de gatos, só será notícia se esse facto se intrometer na vida dos vizinhos, seja por fazerem barulho, cheirarem mal ou constituírem uma ameaça à saúde pública. Dar de comer aos gatos (como aos pombos nas cidades) não é um ato meritório embora, em sentido contrário, maltratar animais seja condenável e por isso noticiável, se os métodos utilizados forem ilícitos – e é preciso que se verifiquem as duas premissas, a maldade e a ilicitude – e como utilizar informação jornalística para fazer propaganda política eleitoral também o é - mas é necessário que o espaço do comentário seja maior do que o da notícia, ou que seja, tendente a defraudar a igualdade de tratamento das candidaturas (lei 85/D de 1975) - portanto o que quero dizer é que em ambos os casos existem medidas para avaliar o que fica de fora da boa prática jornalística e pode ser considerado ilícito.

Como já passaram algumas semanas sobre o episódio da praga dos gatos, quero aqui deixar a minha visão muito clara que numa notícia o que se deve ter em conta é o interesse dos leitores e não a sensibilidade (justa e considerável) de pessoa ou de um grupo de pessoas que constituem apenas uma parte do grupo que são os leitores, neste caso, de um jornal.

Sem a qualificação dada por praga – etimologicamente chaga, do latim plaga, golpe no sentido de ferida resultante de um golpe, portanto de efeitos que não existiriam se o golpe não tivesse sido dado – o sentido da notícia seria irrelevante, um gasto de espaço noticioso, pois se a ideia fosse pôr em relevo a benfeitoria de alimentar gatos, o título teria de referir o benfeitor (individual ou coletivo) e não o resultado da existência de um número anormal de gatos. Fazê-lo de outra forma é desconhecer as regras do texto jornalístico e induzir o leitor em erro e isso sim, ética e tecnicamente condenável (embora sempre já desajustado recorrer à ERC para uma situação destas. É como matar pulgas com luvas de boxe…).

De outra forma, a atitude da CNE, depois de décadas de teimosia unilateral, ao convocar os representantes dos media para analisar a possibilidade de se encontrarem regras de boas práticas que permitam uma cobertura jornalística e editorial dos atos eleitorais em Portugal (no imediato as eleições para o Parlamento Europeu de 25 de Maio próximo) de acordo com o desenvolvimento dos media e da democracia em Portugal, parece prometer uma oportunidade aos sistemas de autorregulação, talvez de corregulação, que como já aqui escrevi, e não só acerca deste tema, são as soluções mais eficazes para salvaguardar o jornalismo profissional, a autonomia editorial o pluralismo e a diversidade para escolha, que a sociedade portuguesa merece e espera, 40 anos depois do 25 de Abril (cansa não é, e parecem frases estafadas mas eu ainda não esqueci a censura...).

A CNE só precisa de fazer uma coisa que, aliás, é da sua única e exclusiva competência: determinar a data a partir da qual e para cada tipo de eleição as regras próprias e exclusivas da cobertura jornalística dos atos eleitorais se aplicam em cada tipo e eleição.

E assim as leis caducas e desadequadas ficam apenas com o seu lugar na história sem interferir com jornais, jornalistas, eleitores e cidadãos (sim os políticos são sempre e antes de mais eleitores e cidadãos).

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