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O Ouriço

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Recebi do sr Paulo Sousa Costa um texto extraído do romance de Joel Neto “OS SÍTIOS SEM RESPOSTA”, Porto Editora 2012 sobre o futebol. E respondi, talvez por ser sábado de manhã, embora tivesse outras tarefas mais urgentes. Afinal a minha sugestão de é preciso que a Seleção Nacional perca para que vençam outras coisas mais importantes tinha que despertar reacções. Curiosamente, como avisou o Pedro Policarpo, somos muitos mais a dizer isto do que o contrário, até agora. Basicamente o que Joel Neto diz é que o sentido da sua vida pessoal resulta de assistir a jogos de futebol: "Nenhuma literatura alguma vez fez isto por mim. Nenhuma poesia, nenhuma arte, nenhuma filosofia. Fê-lo o futebol." 

Fiquei curioso de saber porquê e respondi-lhe assim.

 

 Caro sr. Joel Neto:

 

Não partilho de modo algum o lamento do intelectual contra o futebol . Pessoalmente, aprecio os elementos positivos do futebol tal como o espírito de equipa, a competividade, o cultivo do corpo, o tirar das misérias os “quaresmas” deste mundo bem como o relevante trabalho feito pelas escolas de futebol em relação a iniciados. Existe ainda uma indesmentível estética no desempenho do jogo e, num grau já mais subjetivo, na imponência dos estádios. Sobretudo, o futebol dá alegrias. Além disso, eu tenho a obrigação de conhecer a ligação entre futebol e política, ligação que vem pelos menos desde os tempos em que, em Bizâncio pelo ano de 500 d.C, as quadrigas verdes, vermelhas e azuis e de outras cores disputavam a vitória com o apoio de clientelas urbanas politizadas. Até o imperador Justiniano tinha equipa-partido (por sinal o verde) .

 

Repito. Sou contra o lamento intelectual contra o futebol como jogo jogado. E faço estas considerações porque, como 99% dos portugueses, também eu joguei futebol. Ou, talvez devesse dizer “até eu joguei futebol”. Em tempos, alinhei a defesa esquerdo numa das equipas do colégio ( Maristas)  porque chutava com o esquerdo e era caneleiro o suficiente. Mas não era grande coisa, não. Vi um só desafio, o Portugal Rússia no velho José Alvalade. Ou talvez um outro no Jamor, não sei qual. Assisti a inúmeros jogos na televisão. Joguei o meu futebol de praia e de quinta com os meus filhos e familiares. Joguei em professores contra alunos e, na fase da barriga a crescer, até arbitrei um jogo entre equipas da universidade.

 

 Contudo, o futebol espetáculo e o futebol investimento que se apoderou das equipas desportivas pouco tem a ver com o desporto amador de amigos ou de praia, ou olímpico. Afinal esse futebol da Liga dos Campeões e dos inúmeros campeonatos profissionais é apenas um segmento da sociedade neo-liberal. O neo-liberalismo manifesta-se nos heróis tacanhos – ser bom com os pés deixa uma pessoa abaixo da realização integral com o corpo e a consciência; não se confunda isso com ressentimentos contra os jogadores milionários: eles são bons com os pés, pronto. Como se diz ne sutor ultra crepidam poder-se ia dizer, ne lusor ultra caligam. Manifesta-se, ainda, no negócio não regulado porque o mercado das transferências é dos mais opacos que nós conhecemos. E manifesta-se na total ausência de ligação entre as proezas futebolísticas e o desempenho geral da sociedade. Muitos dos grandes jogadores são exportados por países pobres, ou setores pobres da sociedade.

 

Dito isto, parece-me que o autor do texto, Joel Neto, sofre de paranóia emocional num grau socialmente aceitável mas insustentável como modelo para a sociedade. A atitude manifestada pelo sr Joel Neto não tem nada de especial. Nem é isolada. É comum na prosa  lírico-asfáltica da imprensa desportiva  embora ele se tenha expressado com recorte literário acima da média. Mas isso só agrava o seu caso. Faz parte da crise da Europa alguém que escreve "Nenhuma literatura alguma vez fez isto por mim. Nenhuma poesia, nenhuma arte, nenhuma filosofia. Fê-lo o futebol." O lado bom da frase é que ele conhece literatura, arte e filosofia. O lado mau da frase é que dele se apoderou a emoção do futebol - a que outros chamam fé, esperança e amor, numa litania de epítetos religiosos que faria corar de prazer qualquer namorada a quem fossem dirigidos – de um modo tão avassalador que deita abaixo outras experiências humanas.

 

O sr. Joel Neto não faz mal ao mundo com esta sua paranóia emocional sobre o futebol. Eu receio é que faça mal a si mesmo. Após considerações várias sobre as emoções de alegria, amor etc. que o futebol nele despertou, ele diz assim : “E dedicar-lhe um romance, bem vistas as coisas, é pequeníssima penitência para tão grande milagre.” Aparte a paradoxal pseudo teologia invocada  (quem é que se lembra de fazer penitência por um milagre???? ) quem investe tanto numa só experiência sofre de alguma paranóia de tipo emocional. Num grau socialmente aceitável, repito. Mas também culturalmente criticável. Se eu quisesse usar um palavrão filosófico diria que o sr Joel Neto tem o futebol como única experiência transcendente. O que ele  faz é comunicar-nos a sua experiência de jogos assistidos. Seria interessante que o sr. Joel Neto, em vez de pensar só em “si”, pensasse no “outro”. Olhe que o mundo é maior que os seus jogos de futebol. Olhe que há mais coisas no céu e na terra que essa sua experiência. Olhe que cada um pode e deve ir tão longe quanto o seu ânimo o levar. Olhe que só é possível a sedutora manifestação do futebol , ou mais exatamente, de Espectáculos Desportivos de Sociedades de Investimento – porque é sustentada por uma sociedade laboriosa, sonhadora, pensadora que se aplica a ganhar a vida com a economia e a dotá-la de sentido com as ciências e as literaturas. Despois, só depois, é que pessoas como o sr. Joel Neto podem dedicar algum tempo aos lazeres futebolísticos que tanto apreciam ver do sofá - e a comunicar as suas experiências pessoais . Se aceitar isto, sr Joel Neto, a sua paranóia emocional ficará um bocadinho mais aceitável. Se não, temos de a combater ainda mais porque ela distorce tudo aquilo porque morreram os que criaram o Ocidente e pelo que a vida vale a pena ser vivida. E não é o seu querido futebol, não!

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4 comentários

De Rita Ferro a 28.06.2012 às 12:12

Brilhante, vou levar isto para a minha Moeda de Troika! Aliás, este blog, hoje, ajudou-me MUITO a preparar os meus teminhas da semana - OBRIGADA!

(Rita Ferro, amiga da sua Mulher e admiradora prudente do casal :-)

De Mendo Henriques a 29.06.2012 às 23:06

Mas ó Rita... "V. Não precisa pedir licença!" , como diz o poema de Manuel Bandeira
Boa sorte no programa !

De Nuno Amado a 02.07.2012 às 14:38

Olá
Vim aqui parar por acaso. Embora haja algumas ideias pertinentes sobre estes assuntos, eu ainda não percebi o motivo desta tricotomia futebol / problemas do País/"Cultura".
Futebol é futebol, e tem o seu espaço maior ou menor dentro de cada um de nós; os problemas do País a mesma coisa, e quanto aos pseudo-intelectuais que abundam na nossa sociedade... bem, tenho-lhes de dizer que futebol também é cultura.
Se cada um de nós repartisse estas 3 vertentes da mesma maneira, éramos um povo amorfo!
Agora outra coisa... porque é que tanta gente se agarra ao futebol (faz lembrar o passado, não faz?). Se calhar porque os nossos interpretes políticos são muito fraquinhos, e se calhar porque os pseudo-intelectuais blindaram a nossa sociedade de tal maneira que os projectos culturais apresentados são apenas para o umbigo deles.
O meu hobby é Danda Desenhada, e posso dizer que só não cresce no nosso País porque os pseudo-intelectuais de banheira que dominam toda a cena cultural de Portugal não deixam. Assim entre escolher corruptos (políticos), pseudo-intelectuais de charuto e futebol... a maioria do povo escolhe futebol!
É fácil!
No meu caso é mesmo a Banda Desenhada... mas também gosto de futebol!

Abraço

De Mendo Henriques a 03.07.2012 às 12:31

Caro Nuno Amado. Gostei do seu comentário. Amplia o hoizonte do que eu escrevi e creio que vai no mesmo sentido. Obrigado!

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